25 de julho de 2012





"O que fostes,


Porque fostes...

Emerge, surge

Como chama que resiste

Ao vento, labareda

Ao tempo, branda..."

22 de abril de 2009

Passagem das Horas






" ...Não sei sentir, não sei ser humano,

não sei conviver de dentro da alma triste, com os homens meus irmãos na terra.

Não sei ser útil, mesmo sentindo ser prático, cotidiano, nítido. (...)

Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo,

Mas tudo ou sobrou ou foi pouco, não sei qual, e eu sofri...

Eu vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos.

E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.


Amei e odiei como toda gente.

Mas para toda gente isso foi normal e instintivo.

Para mim sempre foi a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.

Não sei se sinto demais ou de menos.

Seja como for a vida, de tão interessante que é a todos os momentos,

a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,

a dar vontade de dar pulos, de ficar no chão, de sair para fora de todas as casas,

de todas as lógicas, de todas as sacadas

e ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos..."



- Alvaro de Campos -

2 de abril de 2009

Em tudo vos faz presente...




Se não vos vejo
Vos sinto por toda parte...

Não são os olhos que vêem
Nem o sentido que sente.

O amor é que vai além
E em tudo vos faz presente.

- Hilda Hilst -



Maria do Rosário Pedreira






Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele.
E o corpo doeu-me onde antes os teus dedos foram aves de verão
e a tua boca deixou um rastro de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti,
a dar-te um coração que era o resto da vida
- como um peixe respira na rede mais exausta.

Nem mesmo à despedida foram os gestos contundentes:
tudo o que vem de ti é um poema.
Contudo, ao acordar, a solidão sulcara um vale nos cobertores
e o meu corpo era de novo um trilho abandonado na paisagem.

Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras,
a dor esgota as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

- Maria do Rosario Pedreira -

Amar - Florbela Espanca



Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

- Florbela Espanca -

O último poema - Manuel Bandeira

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Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

- Manuel Bandeira -
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Onde vc estiver...

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18 de março de 2009

Tu - Luis Rodrigues



Tu
enlouqueces -me
maravilhas -me
atrapalhas -me
apaixonas -me
cegas -me
confundes -me.
Tu inspiras -me.
Tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu .....

Quero tanto de ti e tão próximo
que anseio que fosses o ar,
o chão, as paredes, tudo.

Que tudo o que tocasse fossem os teus braços.
Que tudo o que sentisse
fossem os teus lábios.

Como quando fecho os olhos e tudo o que não vejo és tu.
Como quando não durmo e
tudo o que sonho és tu.

Contigo não consigo respirar.
Sem ti não consigo viver.

Quero estar tão dentro de ti
que nem a luz do dia exista para mim.
Quero abraçar-te tanto
que todo o mundo colapse
e desapareça num pequeno ponto entre os meus braços.

Toca-me com as tuas mãos.
Faz-me desaparecer com a tua pele.
Sufoca-me na tua língua.
Arrasta-me pelo ar com o teu perfume.
Mata-me de vez.

Odeio-te porque existes.
Odeio-te porque não estás aqui.
Amo-te tanto.

De repente tomo consciência da tua ausência e faz-se noite.
Porque não me respondes quando te falo?
Porque não te sinto quando estendo o braço?
Porque te escondes?

TU
se fosses chuva,
do céu só cairiam pérolas...
E até o chão gritaria de prazer
- Luis Rodrigues -

27 de fevereiro de 2009

Serenata - Cecília Meireles




Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio, e a dor é de origem divina.
Permita que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo

- Cecília Meireles
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Despedida - Cecília Meireles




Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.

- Cecília Meireles -

16 de fevereiro de 2009

Eugênio de Andrade





A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho - é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante.
Ou ignorar fosse todo o saber.

- Eugénio de Andrade -


5 de fevereiro de 2009

Amei-te e por te amar... - Fernando Pessoa -

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Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...


Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.


Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.


Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...


Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?


Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.


Em que és [...] fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...


[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...


Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstrato
Que vai entre alma e alma...
Horas de inquieta calma!


E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei...
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo...


Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?


Nós não sonhamos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos - tão sinceras...
Meu gesto - tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...


Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...


Amamo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.


Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?


Talvez sintas como eu
E não saibas senti-o...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobri-o,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...


Somos a nossa bruma...
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...


Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...


E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.


- Fernando Pessoa -

6 de dezembro de 2008

Para atravessar contigo o deserto do mundo - Sophia de Mello B. Andresen

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Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei aos jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu de dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento


- Sophia de Mello B. Andresen -

Saudades - Florbela Espanca





Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!


Esquecer! Para quê?... Ah! Como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como pão!


Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!


E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!



- Florbela Espanca -

4 de dezembro de 2008

Amor-Paixão - Affonso Romano de Sant'Anna





Separar do amor
a alucinada imagem
distinguindo o que é deserto
do que é miragem
- quem há-de?
Difícil é separar o raio do trovão.
Em certas horas do dia
se está na luz e escuridão.
Apartar os dedos da mão
- quem é tal cirugião?

Esta a ilusão de Caim
ao matar o próprio irmão.
Separar a parte sã
da doentia parte
quem no amor-paixão
teria tal perícia e arte?


- Affonso Romano de Sant'Anna -

Eu apenas queria - Gonzaguinha





Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo presa na poeira
Eu apenas queria que você soubesse
Que esta menina hoje é uma mulher

E que esta mulher é uma menina
Que colheu seu fruto flor do seu carinho
Eu apenas queria dizer a todo mundo que me gosta
Que hoje eu me gosto muito mais
Porque me entendo muito mais também
E que a atitude de recomeçar é todo dia toda hora
É se respeitar na sua força e fé
E se olhar bem fundo até o dedão do pé
Eu apenas queira que você soubesse
Que essa criança brinca nesta roda
E não teme o corte de novas feridas.

Gonzaguinha

Fernando Pessoa




"Eu tenho uma espécie de dever,
de dever de sonhar ,
de sonhar sempre ,
pois sendo mais do que
uma espectadora de mim mesma,
Eu tenho que ter o
melhor espetáculo que posso.
E assim me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, invento palco,
cenário para viver o meu sonho entre
luzes brandas e músicas invisíveis ."

- Livro do Desassossego - Fernando Pessoa -

Valsinha - Vinícius de Moraes





Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto,
pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita
como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços
como há muito tempo não se usava dar

E cheios de ternura e graça
foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou

E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz


- Vinícius de Moraes -

Coração sem Imagens

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Deito fora as imagens,
Sem ti para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.


- Raul de Carvalho -

2 de dezembro de 2008

Em Algum Lugar do Passado

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"Em algum lugar do passado
Você existiu para mim,
E eu já sabia
Que assim virias...

Em algum lugar do passado,
Fomos, nós dois,
Brisa fresca,
Rosas em flor...

Em algum lugar do passado,
Te amei,
Te guardei,
Você me amou e cativou...

Em algum lugar do passado,
Nossos corpos e corações
Foram um só,
Melodia interminável
De nosso amor sem fim...

Em algum lugar do passado,
Nos deixamos
Com a certeza do reencontro,
Como sabemos agora,
Que nos encontramos...

Em algum lugar do passado,
Prometemos jamais nos esquecer
E, agora, no presente,
Carregamos sempre viva as lembranças
Deste tão sublime querer...

Em algum lugar do passado,
Fomos felizes,
Fomos amantes,
Como a flor e a raiz,
O mar e a areia,
Deste amor sem igual...

Em algum lugar do passado,
Dançamos com o vento,
Corremos pela praia
E tivemos sonhos vindouros
Deste amor infinito
Que jamais nos deixaria

Em algum lugar do presente,
Nos reencontramos...
Palavras, atitudes
Que despertam as lembranças das almas,
Que sabiam se conhecer...

Em algum lugar do presente,
Olhares, gestos, toques,
Sensações indescritíveis,
Que somente nossos corações identificam...

Em algum lugar do presente,
Saberemos o que somos
E o que fomos:
Luz do sol,
Amor verdadeiro,
Nesta busca insaciável
De nós dois... "

(desconheço o autor)

1 de dezembro de 2008

Deixas Em Mim Tanto De Ti




A noite não tem braços
Que te impeçam de partir,
Nas sombras do meu quarto
Há mil sonhos por cumprir.

Não sei quanto tempo fomos,
Nem sei se te trago em mim,
Sei do vento onde te invento, assim.
Não sei se é luz da manhã,
Nem sei o que resta em nós,
Sei das ruas que corremos sós,

Porque tu,
Deixas em mim
Tanto de ti,
Matam-me os dias,
As mãos vazias de ti.

A estrada ainda é longa,
Cem quilometros de chão,
Quando a espera não tem fim,
Há distâncias sem perdão.

Não sei quanto tempo fomos,
Nem sei se te trago em mim,
Sei do vento onde te invento, assim.
Não sei se é luz da manhã,
Nem sei o que resta em nós,
Sei das ruas que corremos sós,

Porque tu,
Deixas em mim
Tanto de ti,
Matam-me os dias,
As mãos vazias de ti.

Navegas escondida,
Perdes nas mãos o meu corpo,
Beijas-me um sopro de vida,
Como um barco abraça o porto.

Porque tu,
Deixas em mim
Tanto de ti,
Matam-me os dias,
As mãos vazias de ti.

- Pedro Abrunhosa -

30 de novembro de 2008

Reinvenção - Cecília Meireles

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A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


- Cecília Meireles -

24 de novembro de 2008

Limites do Amor - Affonso Romano de Sant'Anna




Limites do Amor

Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.

- Affonso Romano de Sant'Anna -

Sutilmente - Lya Luft

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Sutilmente


Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um,
sem que no entanto deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora,
para que não baixe o pó de um cotidiano desencanto.
Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.


- Lya Luft -

Amores Vãos - Glória Salles

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Turbulências da vida, uma realidade sem cor.
De ser feliz, não entendia, menos ainda de amor.
Levada por arrasto, dentro da alma um vazio.
Cais abandonado, açoitava o vento frio.

Na vida morna, esqueceu a sensação boa de amar.
E uma noite qualquer, alguém veio lhe lembrar.
Deu-lhe um novo motivo, na vida, novo sentido.
Agora renovada, não mais um livro esquecido.

Eram pura expectativa, ansiavam o momento,
Desligavam se do mundo, puro encantamento.
Paz e emoção assim, nunca pensou existir.
Morreu aquela mulher, que esqueceu de sorrir.

Mas há surpresas, no dobrar de cada esquina.
A mulher renasceu, chorou feito uma menina.
Cega de olhos abertos, foi preciso muita coragem.
Aceitar que aquele anjo, não passava de miragem.

E como num jogo tolo, diversão sem envolvimento.
Demonstrou claramente não ter nenhum sentimento.
Foi tudo ilusão, carência, qualquer coisa parecida.
E ela que havia se achado, ficou outra vez perdida.

O que desejou apenas? Fazer e ser feliz demais.
Sonhou ser seu amor. Sonhou… Nada mais.
Foi tudo pura ilusão, nada concretizado.
Mas a vida é uma escola, e tudo é aprendizado.

Quem sabe por ironia, outra vez, caminho cruzado.
Ela tenha que lhe dizer, que já não é mais esperado.
Hoje desbravando rumos, com o coração nas mãos.
Aprendeu que nessa vida, amores vêm, “amores vão”

- Glória Salles -

Canção - Cecília Meireles



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Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar




Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.



O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...



Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.



Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.




- Cecília Meireles -

Súplica - Miguel Torga


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim, Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.



- Miguel Torga -

Pecado - Arnaldo Antunes




a morte é certa
a carne é fraca
a vida é curta
o sofrimento inevitável

a carne é certa
a pele é fraca
a roupa é curta
o coração indomável

a pele é pele
a roupa é roupa
o sangue é sangue
e a ânsia insaciável

o corpo humano
é desumano
o corpo amado
é desalmado
tudo
é pecado

a vida é breve
a febre é alta
a alma é uma
e o demônio tão amável

o mundo é grande
a mente é suja
o sangue é quente
e o desejo indisfarçável

o amor é cego
o amor é surdo
o amor é mudo
e a moral abominável

o corpo humano
é desumano
o corpo amado
é desalmado
tudo
é pecado

- Arnaldo Antunes -